A tecnologia é essencialmente o estudo das técnicas e dos métodos empregados na execução de tarefas específicas. Neste artigo, abordaremos uma categoria particular de tecnologia: aquela que tem suas raízes no Vale do Silício, que envolve big data, redes sociais e a utilização de dados tanto como ferramenta quanto como fonte de lucro.
Quando a internet foi introduzida, um sentimento de otimismo permeava a sociedade. Acreditava-se que sua presença, ao proporcionar acesso ilimitado à informação, facilitar debates públicos e promover a transparência governamental, resultaria em uma politização consistente da vida social, aumentando o desejo de participação, ampliando a luta por direitos e fortalecendo a democracia. Essa mudança, imaginava-se, culminaria em uma sociedade fortalecida, com maior igualdade e liberdade.
É inegável que a internet, como um poderoso facilitador, trouxe inúmeras vantagens. Sem ela, as dificuldades enfrentadas nos dias de isolamento seriam imensamente maiores. Contudo, logo um aspecto sombrio emergiu: a tensão entre o uso de dados e a saúde da democracia.
Os Dados e as Gigantes da Tecnologia
O capitalismo contemporâneo se fundamenta em duas premissas principais: lucro e consumo. Quando as redes sociais começaram a se popularizar, poucos se detiveram a refletir sobre como essas plataformas geravam receita, uma vez que os usuários não pagavam para se inscrever. Acreditava-se que os benefícios superariam os riscos ocultos nos intricados contratos de adesão.
Desde seu surgimento, as redes sociais foram projetadas para manter os usuários online o máximo de tempo possível. Características como o scroll infinito, a reprodução automática de vídeos e as sugestões de conteúdo foram desenvolvidas para criar um efeito que simula vícios, onde as recompensas surgem de maneira imprevisível. No entanto, a conversão desse tempo em dinheiro não é direta. Mas, como essas empresas geram lucro?
O segredo do sucesso financeiro das gigantes da tecnologia, como Google, Facebook e TikTok, reside na exploração de dados. Cada interação online gera uma impressão digital única, que revela não apenas interesses e comportamentos, mas também vulnerabilidades e medos. Esses dados são processados por algoritmos que agrupam indivíduos com perfis semelhantes, permitindo que as empresas pratiquem o microtargeting. Essa técnica consiste em direcionar anúncios de forma precisa a quem tem maior chance de se interessar, potencializando os lucros.
Inicialmente, as informações coletadas incluíam dados demográficos básicos, como idade e localização. Contudo, a quantidade de dados disponíveis atualmente é tão vasta que eles podem prever comportamentos, abrangendo não apenas produtos de consumo, mas também questões políticas e ideológicas.
Os Sem Mídia
Yascha Mounk, em seu livro “O Povo Contra a Democracia”, argumenta que a chegada da internet fez com que a elite perdesse o controle sobre a mídia convencional, que antes era capaz de marginalizar discursos radicais. A descentralização da mídia, possibilitada pela internet, permitiu que qualquer indivíduo criasse conteúdo e encontrasse grupos que compartilhassem suas ideias, formando “bolhas” de informação.
No entanto, essa descentralização não resultou numa politização mais ampla, como se esperava. Em vez disso, proporcionou espaço para que crenças extremistas e teorias conspiratórias emergissem, muitas vezes impulsionadas pelo anonimato que a internet oferece. A forma como as notícias são consumidas mudou, transformando grandes reportagens em títulos chamativos. Grupos radicais utilizam isso para disseminar ideias por meio de mensagens simplistas que refletem suas visões de mundo.
A Cambridge Analytica e o Colapso da Democracia
A internet, onde o tempo parece não existir, contrasta com a natureza da democracia, que depende de ciclos temporais para mudanças sociais. Essa dissonância pode ser uma das razões pelas quais a sociedade se sente insatisfeita com a política atual. O descontentamento gerou uma busca por líderes que prometessem mudanças alinhadas com as crenças pessoais, reforçando ainda mais a formação de bolhas sociais.
Os algoritmos, concebidos para apresentar uma visão personalizada da realidade, intensificaram essa segmentação. Ao realizar a mesma pesquisa no Google, diferentes usuários recebem resultados distintos, que se moldam a partir de suas interações anteriores. Essa personalização, aplicada às redes sociais, reforça ainda mais as bolhas ideológicas.
Um elemento perturbador desta equação é o uso de dados para influenciar decisões políticas. O caso da Cambridge Analytica, uma empresa britânica fundada por figuras como Steve Bannon, evidenciou essa manipulação. A Cambridge Analytica utilizou dados de milhões de usuários do Facebook para moldar campanhas eleitorais, manipulando conteúdos para impactar resultados, como no plebiscito do Brexit e nas eleições dos Estados Unidos em 2016.
O método denominado psychographics, que liga preferências políticas à personalidade, foi utilizado para criar grupos de eleitores e aplicar microtargeting. Isso permitiu que a empresa abordasse questões sensíveis, como imigração e perda de valores tradicionais, evocando emoções e polarizando a opinião pública.
Embora a empresa tenha defendido suas ações como mera segmentação de mercado, os indícios sugerem que sua abordagem teve um impacto significativo nas decisões de voto, especialmente em um ambiente onde a polarização é extrema.
Proteger a Democracia
Com o aumento da preocupação em torno da manipulação de dados, surge a necessidade urgente de legislações robustas que protejam a privacidade e a integridade da informação. A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) no Brasil foi um passo inicial, e a União Europeia também intensificou suas normas para lidar com o uso de dados por empresas.
Após a revelação do escândalo da Cambridge Analytica, Mark Zuckerberg foi convocado a depor no Congresso dos EUA, comprometendo-se a melhorar as políticas de proteção de dados. Nos últimos tempos, plataformas como YouTube e Twitter têm atualizado suas diretrizes para conter a disseminação de discursos de ódio e desinformação.
Embora estejamos diante de um cenário completamente novo, a luta pela proteção da democracia e dos dados pessoais está apenas começando. O que parece um xeque-mate pode ser, na verdade, uma oportunidade de resistência e transformação. É decisivo que continuemos a lutar por um presente onde a democracia seja preservada e respeitada, livre das garras de manipulações baseadas em dados.
Chico Cavalcante é jornalista, publicitário e escritor.